“O futuro tortura-nos, o passado acorrenta-nos,
eis porque o presente nos foge.”
Gustave Flaubert
Waldo Luís Viana*
Fiquei pensando na brutal chacina de Realengo, que nos elevou pelo lado negativo à categoria de país do Primeiro Mundo, e fiz a mim mesmo aquela acaciana pergunta que afligiu a todos nós: por quê?
A mídia, como de hábito fez suíte da tragédia, partindo do princípio de que o cidadão comum se consola ao se inteirar desses acontecimentos em relação à vida maldita que leva, e trouxe o depoimento de especialistas em psiquiatria e violência, tentando como sempre explicar o impossível.
Na verdade, se tomarmos aqueles poucos minutos oferecidos ao livre-arbítrio do assassino, não haveria tragédia. Quantos presidiários, purgando a própria pena, não lamentam os poucos instantes insanos em que perpetraram um crime e comprometeram para sempre o futuro de suas vidas? Como lamentamos, nós, os inocentes, termos tomado decisões impensadas que entortaram nosso destino nesta ou naquela direção? E não é terrível pensar no passado como uma prisão em que nos metemos por segundos e hoje precisamos dissolver as contradições que produzimos?
A essência da chacina de Realengo é que o pistoleiro desvairado se matou, escapando de ser punido por nossa soberba em culpar alguém pelo que absolutamente não entendemos. Estabelecemos na lei o que é delito e a dosimetria das penas, às vezes em escritórios e palácios refrigerados, enquanto os algozes fazem das suas, tentando escapar dos cruéis castigos e de nossas prisões medievais. Os que conseguem tal intento recebem a admiração oculta dos celerados de fora, que andam soltos, e passam a pertencer à extensa galeria dos bandidos impunes que frequentam as esquinas de nossas vidas diárias, alguns até famosos...
Com o suicídio clássico, justificado por carta logo taxada de desconexa e fruto de mente psicótica, o assassino fugiu ao castigo social, mediante amplo e teatral gesto metafísico. Em minutos, transformou num inferno a vida de dezenas de famílias que nada puderam fazer a não ser lamentar o ocorrido e mitigar o buraco horrendo que passou a existir em suas vidas. Já as nossas autoridades correram logo aos microfones para dar “aquela faturadinha”. Elas sempre precisam lucrar com as tragédias e como uma sucede a outra, decretam luto e alardeiam aos quatro ventos a futura assistência psicológica e moral aos enlutados.
O pano de fundo, é claro, de violência e insegurança geral e difusa em nossas cidades não será tocado, porque necessita de uma política de prevenção jamais praticada. Os brasileiros adoram por tranca em porta arrombada e assim continuará sendo. É nosso destino cultural. Os únicos a prever alguma coisa no Brasil são astrólogos, jogadores de bolsa e banqueiros. Os políticos, porém, ou lidam com o futuro (o deles) ou com o passado (de seus adversários), mas vivem o presente a reboque de sustos, porque não conseguem produzir história.
Nossa história, conspurcada em segundos e minutos, condiciona os anos futuros e nem percebemos. O país jamais será o mesmo depois desse pistoleiro esquizofrênico que expos nossas chagas em fratura exposta: as crianças e os jovens brasileiros não têm a menor segurança nas escolas, a proteção do primeiro emprego nem certeza de futuro. Essa é a realidade, que um fato qualquer, concentrado num instante, é capaz de nos fazer entender e sofridamente engolir...
Somos desabrigados, numa sociedade desabrigada. Já disse, em outro lugar que o corrupto é um idiota que não entende a lei do retorno: ele rouba hoje, amanhã tem de levar o filho escoltado para o colégio e depois de amanhã seu neto será assassinado por alguém prejudicado por seus atos. Se ampliarmos tal estofo para a sociedade em geral, teremos a mórbida contabilidade dos assassinatos sem razão, dos gestos desesperados dos assassinos, sequestradores, ladrões e estupradores que refazem por segundos a história de nossas cidades, sujando o seu destino com sangue inocente.
“Alô, alô, Realengo, aquele abraço” – disse bem o menestrel, sem saber que um dia o lugar seria um divisor de águas de nossa desídia. Não conseguir punir o culpado é pior, porque torna a culpa coletiva, tendo que ser suportada e magnificada por todos nós!
Fechados os caixões das crianças e dos adolescentes indefesos, passaremos logo à próxima atração, naturalmente com o costumeiro padrão global de qualidade. O espetáculo terá de continuar, porquanto nos habituamos a não enfrentar o essencial, que não pode ser reduzido a discursos vazios nem às manipulações de licitações viciadas. Já estamos escutando, com o nosso espírito acomodado, a conversa mole de desarmar a população, como se ela fosse a culpada, ou algum movimento para gerar de chofre um conjunto de leis mais duras, sempre engavetadas no Congresso nas horas posteriores.
Cobrar-se-á depois do Judiciário a solução, como se um poder provocado, sob a pressão de milhares de leis, que subsidiam nosso Estado corruptíssimo, pudesse conter a solução mágica. E o pior é que acostumaram o pobre a essa pantomima: em qualquer tragédia, onde o poder público nos faz de palhaços, aparecem os protestos dos humildes e, com microfones abertos, qualquer do povo fala, sentenciosamente: “eu quero justiça!”. Não é verdade, isso? A reportagem é editada e, diante do acontecimento trágico e clamoroso, seja ele qual for, alguém da patuléia, da choldra enfezada e ofendida vem com o apelo final: “eu quero justiça!”
Só esquecemos do detalhe: a justiça no Brasil é pior que a divina, demora mais...
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*Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e teme viver daqui por diante em luto permanente...
Teresópolis, 8 de abril de 2011.
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