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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O ESCRITO DE DÍVIDA




“As grandes dívidas são privilégio da riqueza.”
Georges Duhamel

Waldo Luís Viana*

         Um costume romano, denunciado por São Paulo Apóstolo em suas divinas epístolas, traz-nos a imagem dos devedores da época de Jesus, na Palestina, em que o devedor, trancafiado e humilhado, tinha escrito em seu corpo, com carvão em brasa, o montante de suas dívidas, o que, por sua vez, iria nortear o número de chibatadas que levaria. Alguns, de tão vultosos os compromissos e impostos que lhes cabiam, acabavam mortos pelos látegos poderosos dos soldados, a serviço das autoridades então constituídas.
         É desse tempo a reminiscência de expressões muito usadas hoje em dia: “estar sujo na praça” lembra bem aquele carvão ardente que molestava ou extinguia para sempre o devedor. Estar limpo, atualmente, significa estar bem com a própria consciência e inclusive poder comprar à prestação e possuir os maravilhosos cartões de crédito...
         Aos endividados, resta-nos comprar à vista ou receber a correspondência funesta de bancos, financeiras, lojas e outros órgãos privados e públicos, procurando ser restituídos do que nos emprestaram a juros astronômicos. Estes, porém, não podem praticar o “escrito de dívida”, porque estão proibidos terminantemente por lei. Tal instituto, vetusto e perempto, porém, ainda é praticado na surdina por traficantes, bicheiros e agiotas, que, por incrível paradoxo, cobram juros menores do que as instituições legalizadas pelo nosso Banco Central. O único perigo desses indivíduos, alcunhados de fora da lei, é cobrar a dívida extinguindo o devedor, o que os assemelharia à soldadesca romana dos velhos tempos...
         No entanto, no espaço vital entre a humilhação pura e simples e a destruição completa do devedor há espaços legais de manobra praticamente infinitos. Os bancos e financeiras são dotados de telemarketing especializado em cobrança, que ataca os inadimplentes desde o final do horário comercial de sexta-feira e muitas vezes no sábado, com o fito de tirar o sono da vítima e deixá-la preocupada por todo o fim-de-semana. A tortura, como não pode mais ser física, deve ser mental, calculada e nos seguintes termos: “para a sua segurança, esta ligação está sendo gravada”. Uma voz metálica e sem sentimentos, que demonstra que o atingido deve acreditar que passou a ser vigiado e que tudo o que disser será usado contra ele próprio, que nem filme americano (Lei Miranda)...
         Tive pessoalmente experiência amarga com um banco, por causa de dívida contraída em virtude de grave acidente e operação cirúrgica  que afetaram meu braço direito. Desde então não tive paz, mesmo tendo que me curar com os recursos que possuía à mão. Tentei de todo modo negociar com a benemérita instituição, pensando que ela pudesse me dar tratamento semelhante a seus clientes vips. Qual nada! A instituição demonstrou-me,  na prática,  que para ela nada representava. Mais um que deveria ser submetido aos injustificáveis juros sobre juros, o que – perdoem-me! – em linguagem tecno-jurídica é chamado “anatocismo”, prática devidamente proibida por súmula explícita do Supremo Tribunal Federal.
         No entanto,  súmula explícita do STF é mais ou menos como sexo explícito: todo mundo gosta de que exista, finge aceitar, a maioria interpreta como quer e os demais fazem vistas grossas. E a Constituição reza que os juros devam ser limitados, mas a cláusula também jamais foi regulamentada, de propósito, ou esquecida como texto morto, principalmente por banqueiros e demais plutocratas.
         Resta-nos, reles povinho, a lembrança do escrito de dívida, o dualismo “sujo-limpo”, erguido no mundo antigo e sustentado à sorrelfa por uma máquina de comunicação azeitada pelos mesmos aproveitadores que nos oprimem.
         Cristo subiu à cruz e nos salvou, inclusive das dívidas. Por isso, no Pai-Nosso existe a menção original ao escrito de dívida, que levava à morte nos tempos do Mestre.
         Hoje, parece-nos que o capitalismo, atropelando os códigos e os costumes, quer nos enjaular na farra dos SPCS e SERASAS da vida que, com seus computadores implacáveis, vasculham a vida dos cidadãos, separando-os em duas classes: os bons, os limpos, de um lado, e os maus e sujos cidadãos, caloteiros de coração, do outro, que receberão o carvão quente dos soldados romanos nas próprias consciências através dos meios tecnológicos e eletrônicos.
         Minhas dívidas não são grandes nem importantes. Talvez correspondam a menos de um dia de trabalho de um político ou de um jogador de futebol. No entanto, não posso pessoalmente seguir o conselho antigo do ex-ministro e deputado Delfim Netto, que recomendava para o país: “dívida se empurra com a barriga”.
Descobri que sou apenas um indivíduo, não um país. E que também as dívidas são privilégio dos muito ricos, talvez mais queridos quando elas existam, porque os credores os olham com fidalguia e lhaneza. Para mim – talvez para você que me escuta –, resta-nos aceitar a volúpia da avareza e da ganância. Não temos saída...
         Vale o escrito...

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*Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e deve ter apanhado muito na Antiguidade.
Teresópolis, 4 de fevereiro de 2011. 

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