A verdade é um espelho que caiu das mãos de Deus
e se quebrou. Cada um recolhe um pedaço
e diz que toda verdade está naquele caco."
Provérbio iraniano
Waldo Luís Viana*
Corria
em mim a cândida idade de nove anos incompletos, quando estourou o
contragolpe, a revolução ou o golpe de 1964. Seja qual nome adotado,
nada tive a ver com o movimento, contra ou a favor. Como já possuo um
passivo de 56 anos, creio que a maioria do povo brasileiro hoje em dia
também não fora responsável direto pelos acontecimentos que culminaram
no evento, nem tampouco tem a ver com as suas consequências, notadamente
a luta armada ou a guerra oficial contra ela, empreendidas entre 1968 e
1975.
Isso
posto, é preciso notar que o regime militar terminou em 1985, após 20
anos de ditadura, embora o período de transição de José Sarney
(1985-1989) tenha sido ainda tutelado pelas Forças Armadas, época ainda
prenhe de explicações por parte de bons historiadores.
Quando
tinha 34 anos pude, enfim, resgatar minha cidadania e votar para
presidente da República, após amargar, como quase todo mundo a tristeza
de, anos antes, ver falecido o doce movimento das Diretas-Já, que, em
1984, procurou transformar pacificamente nosso precário sistema
eleitoral de eleições indiretas.
Hoje
vivemos um regime democrático regular, mas eis que o governo atual
pretende revolver o passado para recuperar o sentido histórico do que
foi perdido nas franjas do tempo, remexendo em feridas que pareciam
sepultadas pela velha lei da Anistia (1979).
A
Anistia valeu, como confirmou há pouco tempo o Supremo Tribunal
Federal, mas a militância de esquerda não se deu por vencida: deseja
revolver o que foi sepultado para trazer à tona o que até hoje ficou
equívoco e sem melhor explicação.
Como
nada tenho a ver com o período, sei que houve mortos de lado a lado,
torturadores, torturados, vítimas e assassinos a sangue-frio. A guerra
oficial foi vencida pelo Estado, cujos proprietários e ideólogos da
ocasião eram os militares e seus prepostos tecnocratas. Hoje, ao
converso, os manipuladores do governo são de outra ideologia e propagam,
com toda a convicção, que praticam agora a democracia e os direitos
humanos.
Querem
nos convencer – aos que nada têm a ver com o bololô – que militares de
direita torturaram e massacraram à vontade inocentes ativistas
anti-ditadura que eram “apenas” democratas e meros agentes dos direitos
humanos. Essa é muito boa!
Esse
estratagema de linguagem é grave, porque pressupõe uma reação
extremista de um lado e moderada do outro, como se houvesse excessos de
um lado só. O outro era o da facção vitimada e trucidada, com raras
exceções, entre as quais a nossa “presidenta”, que nos governa...
Ora,
se é comissão da “verdade”, não se pode aceitar que ela esteja apenas
de um lado, porque, senão, não haveria querelas. Ocorre que existem
arquivos históricos confiáveis de que houve luta armada, guerrilha,
sequestros e assassinatos perpetrados pela esquerda radical, que
gostaria de ver instaurado no país um regime parecido com o de Cuba,
que, então, estava na moda...
Vários
próceres do atual governo, inclusive, foram treinados na ilha dos
Castro, retornando ao país com objetivos de retomada do poder pela
força, compondo células e aparelhos, na tentativa de subverter a
ditadura de direita.
Para
os de esquerda, os militares subvertiam a ordem que pretendiam
instaurar, isto é, uma república proletário-sindical, à semelhança de
Cuba e da extinta União Soviética; para os militantes da direita, os que
foram para a clandestinidade, os banidos e os cassados representavam a
massa de manobra que pretendia desfigurar a Pátria, mediante um regime
comunista e ateu...
No
meio dessa sopa conflitante e ideológica nós, o povo, assistíamos a
tudo, tocando o nosso dia a dia, opinando e silenciando de acordo com a
conveniência cidadã de gente mal-informada ou sempre cientificada pela
metade do que estava acontecendo.
Agora,
após tantos anos, os dois lados preparam-se para nova guerra, açulando
os mais portentosos argumentos de parte a parte. Os cadáveres da
esquerda e da direita ressurgirão, revigorados, trazendo raiva e estupor
para uma sociedade de massas, entorpecida pela mídia e amedrontada no
seu dia-a-dia sob violência difusa e insegurança.
Pobre
povo brasileiro, que não pode andar para a frente nem merecer o futuro!
Abrirão a tampa do caldeirão e as bruxas surgirão, de parte a parte,
com seus sortilégios noturnos. Poucos ganharão as reparações de guerra,
um conflito em que a maioria absoluta da nação não lutou ou viveu
qualquer envolvimento direto ou indireto.
A
pantomima desenvolver-se-á em meio a eleições, sendo bucha de canhão
para aproveitadores, assim como se diz dos mensalões, também objeto de
conflito e que sabemos não darão em nada em nossa Justiça capenga, lerda
e elitista.
Os
caquinhos da verdade pertencem a dois grupos, em luta eterna, e que não
mais representam os interesses do povo brasileiro. Os queixosos de
injustiças – nós vamos ver – serão calados por maçarocas de dinheiro
sangradas dos contribuintes e voltarão para suas casas, aburguesados,
para criar os filhos, os netos e seguir a vida.
Na
verdade, a melhor coisa de que me lembro do período militar foi de uma
música do Chico Buarque, em que ele implorava intensamente: “chamem o ladrão, chamem o ladrão!”.
Parece que deu certo a veemência do ilustre compositor: os ladrões
foram chamados e, hoje, no governo atual, estão todos aqui...
*Waldo
Luís Viana é escritor, economista, poeta e não usufrui hoje de
boquinhas nem do Estado aparelhado, assim como ontem não foi agraciado
com cargos nem comendas...
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