“Nenhum animal é mais calamitoso do que o homem,
pela simples razão de que todos se contentam
com os limites da sua natureza,
ao passo apenas o homem se obstina em ultrapassar
os limites da sua.”
Erasmo
Waldo Luís Viana*
Meu jardim é local poético, forja de várias reflexões. Outro dia nele vi um inseto que fingia ser uma folha. Era verdinho que só ele. Peguei-o com dois dedos e o coloquei num jasmineiro. Imediatamente ele ficou tão escuro quanto as folhas da árvore e sumiu de minha descuidada e fluida percepção.
Refleti, então, sobre a sua necessidade de se esconder dos predadores e simular uma cor semelhante ao ambiente, dissolvendo-se ou escapando de futuras ameaças. Muitos animais também o fazem e não é preciso ser especialista para topar com tais exemplos na natureza ou em documentários populares de televisão.
A natureza produz comportamentos simuladores, onde o engano pode valer a sobrevida e o ilusório resultar em refeição. Os animais lutam pela sobrevivência, darwinianamente, e vemos espécies que se adaptam, a ponto de sobreviverem quase intactas no tempo. E os mais aptos exemplares ousam formar o topo da cadeia alimentar, permanecendo vivos mesmo em ambiente hostil e avassalador.
O homem, por sua vez, construiu a sociedade a partir da linguagem e do aperfeiçoamento de instrumentos, que o dotaram de talentos para se multiplicar e usufruir da extensa gama de recompensas que a natureza dispôs sobre o planeta. Construiu, no entanto, uma sociedade desigual, em que soube escravizar o outro homem e, posteriormente, segmentou-o em classes pela ditadura do dinheiro. O egoísmo capitalista parece ser até o último estágio de nossa civilização, que agora entra em conflito inevitável com a própria natureza que o gerou e lhe deu suporte.
Já o animal simula para sobreviver – esse é seu instinto. O homem, por sua vez, mente, atribuindo esse comportamento a um esforço para derrotar o outro no jogo social. A mentira, bem como todas as gradações de fingimento e perfídia, compõe o arsenal que nós utilizamos para sobreviver na selva da vida, em que o comportamento fraterno e solidário parece ser mera exceção e não a regra.
Muitos de nós acreditam que temos de copiar o universo darwinista dos animais, que matam para sobreviver. Esquecem-se de que tais hábitos naquele reino são regulados por delicado equilíbrio ecológico, em que ao final o meio ambiente sai ganhando, com a preservação automática de biomas e espécies.
Há alguma coisa de sagrado no bom funcionamento do relógio da natureza e apenas ao homem é dado inteligência suficiente para profaná-lo. Assim, temos a exploração predatória de riquezas, com geração de energias poluentes e o soerguimento de uma sociedade de consumo voraz e de uma civilização do luxo e do lixo. Temos megalópoles caóticas e superpovoadas, que nossa espécie teima em manter e multiplicar, apesar de todos os contratempos que produz. Nelas, o saneamento básico, a saúde pública e os transportes são problemas crônicos, praticamente insolúveis na maior parte das nações. E mesmo distante das melhores soluções e vivendo imensas desigualdades sociais, o homem mente, perseverando em justificar seu modo de vida pós-moderno como o melhor dos mundos...
Se nós mentimos, como indivíduos, também servimos nossa civilização com engodos. Bem sabemos que, em breve, não teremos mais água doce para beber e a humanidade, dentro de trinta anos, ver-se-á entregue a uma guerra fratricida por mananciais. O Brasil, nesse sentido, com seus aquíferos subterrâneos, será objeto da sanha internacional, do mesmo modo que o século XIX assistiu ao colonialismo que extraía riquezas minerais e vegetais dos países pobres para o mundo europeu ocidental, então desenvolvido.
Hoje, o extremo ocidente, representado pelos Estados Unidos entra em decadência e o mundo, novamente, marcha para o oriente, mediante o novo protagonismo da China. É a marcha geográfica do desenvolvimento, que obedece à rotação da Terra. Basta lembrarmos da história universal, de seis mil anos para cá...
O homem mente para preservar odiosos privilégios, mesmo que isso resulte em guerras inconsequentes e no martírio de seus iguais. Não bastam as religiões e todos os esforços meritórios de amor, difundidos teimosamente por alguns de nossa espécie, distinguindo-nos da simulação do mundo animal, que não são suficientes para deter a marcha da humanidade para o abismo.
Teimamos em manter em funcionamento os vastos estoques de energias “sujas”, que terminarão por nos exterminar, já que escapam ao controle do equilíbrio ecológico em que não deveríamos tocar.
A ânsia pós-moderna de dessacralizar o que é sagrado nos precipita numa escravização sem precedentes, em que um esquema jamais visto de redes de mídias se encarrega de difundir mentiras e realidades virtuais, numa dimensão nunca imaginada.
O mundo humano é a difusão da mentira, erigida em realidade universal. Não simulamos como os animais para sobreviver, mentimos para nós mesmos e para a natureza, pensando ter encontrado as soluções.
No entanto, a verdade é que nessa injusta caminhada tornamo-nos nós mesmos o problema e já não dá mais para fingir que somos insetos adaptados num jardim imenso, porque diante das ambições e da maldade exibidas, o meio ambiente nos execra e ameaça até se vingar.
No belo jardim que ainda é nosso planeta, a natureza nos vem percebendo como problema. E para ela, os problemas não existem; existem apenas soluções...
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*Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e gostaria muito de não perceber a aproximação de tempos catastróficos...
Teresópolis, 19 de março de 2011.
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